Flávia – Relato de parto
Fui talvez das primeiras pessoas a quem a Flávia confidenciou que poderia estar grávida, pedi por tudo para fazer o teste e dizer-me o resultado - também eu estava empolgada com a novidade. A confirmação não tardou, só não sabia ainda que a Flávia iria ser a protagonista do meu primeiro acompanhamento como Doula, o que na verdade só se veio a decidir meses mais tarde. A Flávia queria-me a mim do lado dela, assim como o marido, infelizmente não podíamos estar os dois presentes durante o trabalho de parto e parto, mas a escolha foi de ambos, e senti sempre que foi uma decisão ponderada e harmoniosa. Tivemos alguns encontros e delineamos em conjunto o plano de parto. Ambas já tínhamos vivido a experiência de um parto natural, e era esta a sua vontade, senti-a sempre confiante, tranquila - o que se veio a revelar ser um fator determinante no dia do parto. Combinamos que assim que sentisse as primeiras contrações me chamasse. O meu último parto evoluiu tão depressa que quando me apercebi que estava prestes a ter a minha bebé, só tive tempo de chamar o INEM, acabando o parto por ser em casa. Foi um parto maravilhoso e que recordo sempre com muita emoção, mas como esta era a experiência mais presente, reconheço que de me deixou algo receosa, imaginando se o mesmo se passasse com a Flávia.
Na primeira - e única - consulta de termo, soubemos que a bebé tinha pelo menos 3500gr e a Flávia 3cm de dilatação. Despedi-mo-nos uma da outra, sorridentes e felizes, ansiando que o momento chegasse.
Os dias foram passando, fomos estando sempre em contacto uma com a outra, a Flávia ia-me relatando como se sentia, o corpo ia transmitindo alguns sinais de que estaria para breve... Só nos restava ter paciência e aguardar.
Na véspera do parto liguei à Flávia logo pela manhã. Sabia que dali a dois dias tinha um casamento e quis saber se já tinha o vestido, já que se a bebé não nascesse entretanto, ela iria. Ainda nos rimos com a situação e a verdade é que nessa tarde ela saiu para comprar o vestido, e decididamente, ir ao casamento.
Foi nessa madrugada, por volta das 4h20 que atendi a chamada da Flávia. Do outro lado a voz era serena, disse-me que estava bem e que as contrações tinham intervalos de oito minutos, aproximadamente. Vesti-me, preparei tudo e arranquei para casa dela, onde cheguei perto das 5h. O casal estava calmo e feliz, ele então, com um sorriso como não lhe conhecia ainda. Eu estava em pulgas. Que privilégio estar com uma mulher dona de uma tranquilidade inabalável. Fomos as duas no meu carro para o Hospital.
Já na maternidade, o contacto com a profissional de saúde que nos recebeu não foi aquele que esperávamos, foi dito à Flávia que teria de ficar com o "sorinho" e "deitadinha".
Eu nem queria acreditar que aquilo estava mesmo a acontecer. Dei por mim a pensar que ainda íamos a tempo de ir para o Hospital da Póvoa. Mas a Flávia sabia que estava bem e que não precisava de soro para nada, refutou a ordem da profissional de saúde, responsabilizando-se pela sua decisão, mantendo-se firme e confiante em relação ao que tinha idealizado para o seu parto, que era tudo menos estar imobilizada na cama. A Flávia tinha um plano de parto, que acabou por partilhar verbalmente com a profissional de saúde, em particular, aquilo que sentiu ser imprescindível naquele momento do trabalho de parto.
Mal entramos no bloco e assim que terminou o CTG, a Flávia arrancou a bata, queria ir para o duche e assim foi. Desliguei a luz da casa de banho e encostei a porta. Ficamos as duas ao som da sua playlist, debaixo de uma luz muito ténue que passava pela porta entreaberta.
Ficamos ali cerca de duas horas, as contrações entretanto ficaram com intervalos de cerca de dois minutos. A Flávia descansava entre as contrações na bola com a água a correr pela barriga, e assim que vinha uma contração, levantava-se e afastava a água. Durante a contração e enquanto estava de pé e de costas para mim, foi evidente o trabalho que ambas fizeram, ela e a bebé. Todo o corpo da Flávia se movia de uma forma sábia. Nada era treinado, os movimentos eram inevitavelmente espontâneos, ali estava mais uma prova de como o nosso corpo sabe tão bem o que faz.
Da segunda vez que chamei a Enfermeira a Flávia já tinha a dilatação completa, a bolsa continuava intacta. Começou a ter vontade de puxar e uns minutos depois, vi o milagre da vida acontecer ali mesmo, à minha frente. Vi nascer uma bebé saudável, de parto natural, com 4235gr para espanto de todas no bloco!
Como se não bastasse, a Flávia ainda me disse para cortar o cordão, fi-lo com a maior felicidade, ainda que muito desajeitadamente.
Obrigada por tamanho privilégio.
Durante o período expulsivo, lembro-me de pronunciar palavras de carinho e incentivo à Flávia. Ela foi uma grande mulher, abraçou a dor e usou-a a favor dela.
Sinto que a sua garra, convicção e a preparação que fez nas duas gravidez foram as suas maiores aliadas, tanto no trabalho de parto, como até mesmo para lidar com as hostilidades. Invejo-lhe a capacidade de não ter permitido que uma situação infeliz a tivesse bloqueado, e eventualmente estagnado o trabalho de parto. Pode até ter tido o efeito oposto. Não sei.
Não posso deixar de dizer que não é isto que quero para mim e para as outras mulheres, um dia, serão também as minhas filhas. Quero poder confiar nos cuidados que vamos receber e que vou ser respeitada nas minhas escolhas para o nascimento dos filhos que ainda vou ter.
Felizmente, as Enfermeiras com quem nos cruzamos respeitaram-nos, e para mim essa é parte da essência desta profissão tão nobre. Respeitar as escolhas, prestar cuidados individualizados, ajudar a alcançar os desejos de cada mulher/casal.
Memorizei a cara de cada uma delas e é com muito carinho que vou recordar este parto.
Mãe • Fundadora da Braga Materna • Conselheira em Aleitamento Materno • Assessora de Lactação • Doula